As religiões de matriz africana no Brasil: luta, resistência e sobrevivência
PAULO FRANCO, G. As religiões de matriz africana no Brasil: luta, resistência e sobrevivência. Sacrilegens , [S. l.], v. 18, n. 1, p. p. 30–46, 2021. DOI: 10.34019/2237-6151.2021.v18.34154. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/sacrilegens/article/view/34154. Acesso em: 2 nov. 2025.
Reflexos da Colonização e Escravidão nas Religiões de Matriz Africana
1. Contexto Histórico e o Tráfico de Africanos
Os africanos foram retirados da África para suprir a carência de mão de obra nos empreendimentos coloniais dos portugueses no Brasil
. O Brasil foi comprovadamente o maior comprador de escravos das Américas, disseminando-os por todo o território nacional
. A viagem no navio negreiro era um momento de muita dor e incertezas, e muitos morriam por falta de vitaminas, precariedade de higiene e depressão
. A alimentação a bordo do navio era deliberadamente diminuta, a fim de inviabilizar a resistência dos cativos, sobretudo nos primeiros dias
. A diáspora africana está ligada ao projeto colonial, que é um acontecimento marcado pela tragédia das humilhações, sequestros, assassinatos, torturas e comércio de seres humanos
.
Citação: "Quinze milhões de pessoas, de diferentes regiões da África, que traziam suas relações com a vida, a morte, as pessoas, a natureza, a palavra, a família, o sexo, a ancestralidade, Deus, deuses, as energias, a arte, a comida, o tempo e a educação
. Enfim, com as suas formas de ver, pensar, sentir, falar e agir no mundo ." (CAPUTO, 2012, p. 40
2. Violência, Dominação e Desumanização
O país foi organizado sob os pilares de um racismo sistêmico e estrutural, marcado pelo genocídio e pela perseguição às religiões de matriz africana e indígena
. A sociedade brasileira foi construída sob os pilares do patriarcado, do racismo, da misoginia, da exclusão e da violência física e psíquica
. A violência, seja física, simbólica ou psíquica, sempre esteve presente no cotidiano dos africanos e seus descendentes no Brasil
. Mediante o processo colonizador, os escravizados perderam a sua humanidade, se tornaram objeto e foram proibidos de colocar em prática os seus rituais religiosos
. A imposição do modo cristão de entender o mundo desconsiderou a cultura africana e indígena, buscando um padrão único de comportamento para manter o controle sob o sujeito escravizado
.
Citação: "Somente através da conversão o indivíduo seria um ser capaz de ser reconhecido como dotado de inteligência
. Fora disso, o restaria a condição de selvagem, desalmado, débil, potencial, maléfico, em suma, desumanizando ao ponto de ser coisificado ." (RUFINO, 2019, p. 79)
3. Religião como Resistência e Estratégia de Sobrevivência
Os africanos arrancados do seu continente tiveram que encontrar estratégias que lhes possibilitassem a sobrevivência
Foi na religião, no culto aos orixás, que os escravizados encontraram forças para sobreviver às brutalidades impostas pelo sistema escravista.
Entre todos os mecanismos de sobrevivência, a religião foi um dos que mais colaboraram para manter vivas as tradições de origem africana
. A religião foi algo muito importante para ajudar os africanos a sobreviver diante de todas as violências sofridas no país
.
4. O Catolicismo e o Sincretismo Religioso
Os portugueses trouxeram o desejo de propagar a fé cristã católica, mesmo que para isso fosse necessário anular a cultura do outro e impor atos de violência
. O catolicismo assumiu um papel importante no contexto colonial de dominação dos corpos e das almas dos africanos, buscando neutralizar as outras possibilidades de relação com o sagrado
. As práticas religiosas dos negros eram vistas como "magia", "feitiçaria" e "curandeirismo", e precisavam ser combatidas, principalmente pela Igreja Católica
. Sincretismo como Proteção: Os africanos escravizados aceitaram o sincretismo como uma estratégia de sobrevivência diante das imposições católicas
.
Citação: "O problema [de esconder a religião] foi resolvido pela utilização de estátuas de santos católicos
| Religião | Características e Matrizes | Citação Principal |
| Candomblé | Criada no Brasil, mas com função primordial de culto às divindades africanas (inquices, orixás ou voduns), sendo a religião que busca a conservação da memória coletiva africana no solo brasileiro e tem a África como fonte privilegiada do sagrado[cite: 72, 73, 94, 97]. | "O candomblé significaria justamente o contrário, isto é, a conservação da memória coletiva africana no solo brasileiro[cite: 94]." (ORTIZ, 1999, p. 16) |
| Umbanda | O nome umbanda tem origem na língua quimbunda e significa "arte de curar", "curandeirismo" ou "magia". Também existem interpretações que sugerem "lugar de culto" ou "sacerdote". A palavra reflete a prática da religião em ajudar as pessoas por meio da cura, tanto no sentido espiritual quanto material. | Fenômeno urbano, considerada uma religião tipicamente brasileira, nascida num momento de modernidade, que se afasta de elementos como o sacrifício de animais[cite: 79, 101, 102]. Incorpora elementos da cultura africana (orixás, transe, ancestrais), indígena (ligação com a natureza, ervas, cachimbos) e europeia (sincretismo com santos católicos, Kardecismo)[cite: 81, 87, 88, 89]. |
- O primeiro passo do sincretismo foi justamente a necessidade de uma acomodação á nova situação. Os negros precisavam esconder dos brancos o melhor possível a sua religião. O culto secreto aos Orixás não oferecia segurança suficiente.
- O problema foi resolvido pela utilização de estátuas de santos católicos. Estes santos eram inicialmente apenas como que uma máscara que foi vestida sobre os rostos dos Orixás negros. Sobre o Pegi, no qual o Orixá recebia o sacrifício de animais, foi colocado um altar católico, com toalha branca, flores e estátuas ou quadros de santos.
- Estes santos não foram escolhidos de modo aleatório. Foram escolhidos santos que de alguma forma lembrassem alguns aspectos dos respectivos orixás. As ofertas colocadas diante dos santos não se destinavam na verdade aos santos; as velas ali acesas não queimavam para os santos.
- Essa dissimulação é em si o ponto de partida do sincretismo ocorrido no Brasil entre o Cristianismo e religiões de africanas.
- Esta substituição dos Orixás por santos católicos tinha como consequência não apenas uma proteção para os Orixás, mas também para os seus cultuadores, que eram mais respeitados perante a sociedade (branca e católica). Num país onde a classe dominante era católica, uma tal devoção aos santos católicos era naturalmente vista com bons olhos
6. Racismo Religioso e a Luta Contemporânea
- Os ataques sofridos pelos praticantes de matriz africana estão estritamente relacionados com o pertencimento étnico, o passado histórico e com a base racista que estruturou a sociedade
. - Citação sobre a terminologia: "Penso que a noção de intolerância religiosa não é suficiente para entender o que acontece com as comunidades que vivenciam as tradições de matrizes africanas, pois não é apenas, ou exclusivamente, o caráter religioso que é recusado efetivamente nos ataques...
É exatamente esse modo de vida negro, mesmo quando vivenciado por pessoas não negras, que se ataca ." (FLOR DO NASCIMENTO, 2017, p. 54)
A violência é classificada como racismo religioso porque contempla uma luta conjunta que envolve questões étnico-raciais e religião, dando maior visibilidade à luta antirracista do movimento negro
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7. A Resistência do Povo de Santo
Apesar de haver legislação que garante a liberdade religiosa, na prática, os afro-religiosos lutam por esse direito e são discriminados em diversos ambientes (doméstico, privado ou público)
. Ocultar a verdadeira pertença religiosa é uma forma de defesa contra ataques violentos e intolerantes
. As comunidades tradicionais de terreiro têm buscado alternativas para garantir o direito de praticar seus rituais:
Criação de ONGs, movimentos ecumênicos e marchas
. Aproximação da academia e de advogados/promotores
. Utilização de redes sociais por jovens de terreiro para dar visibilidade à luta contra a intolerância
. Lutas jurídicas que começam a apresentar resultados favoráveis aos adeptos das religiões afro-brasileiras
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Apesar de serem as maiores vítimas da violência, as religiões de matriz africana continuam sem utilizar a violência e os discursos proselitistas contra aqueles que promovem os ataques de ódio
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